Análises

Por que o Decreto de Comissariado é inválido?22 minutos para ler


A visita que D. Raymundo Damasceno Assis e D. José Aparecido Gonçalves de Almeida realizaram à Casa Geral da Associação Arautos do Evangelho, a fim de apresentar o Decreto de presumido comissariado, em 18 de outubro passado, transcorreu num clima de profunda transparência e sinceridade, como fundamentos da comunhão eclesial.

Nessa ocasião, o Presidente Geral dos Arautos do Evangelho, Sr. Felipe Lecaros Concha, com os membros de seu Conselho, e alguns assessores, entre eles um canonista, mostrou a absoluta invalidez de tal Decreto em relação à Associação Internacional Privada de Fiéis Arautos do Evangelho em razão de erros fundamentais nele contidos, que geram graves ilegalidades canônicas e provocam sua invalidez ou nulidade.

O Decreto de comissariado dos Arautos contém erros fundamentais que provocam sua invalidez, ou nulidade

A solidez dos argumentos apresentados pelo Presidente Geral foi reconhecida por D. Damasceno e D. Aparecido, como consta da Ata dessa reunião. Com efeito, tendo eles manifestado, no início da reunião, que comunicariam o Decreto a todos os bispos das dioceses onde os Arautos atuam, no fim dela declararam que não procederiam a comunicação desse Decreto a nenhum bispo, em razão da consistência dos argumentos de invalidez apresentados.

Mas torna-se aconselhável explicar de modo simples e claro, para não especialistas no Direito Canônico, o motivo principal da nulidade do Decreto, sua ilegalidade e a injustiça que ele representa, bem como o atentado à boa fama dos Arautos do Evangelho no mundo inteiro, originado pela difusão precipitada de tal Decreto diretamente na Sala de Imprensa do Vaticano, no dia 28 de setembro, com anterioridade a sua notificação e apresentação aos interessados, o que esteve a cargo do nomeado Comissário, quem procedeu à leitura íntegra do Decreto nas respectivas reuniões tidas com os Conselhos das Instituições afetadas, nos dias 16 e 17 de outubro passados. Incompreensível atitude da Santa Sé, ou da Congregação, ou ainda da Cúria Romana.

Porém, como entre os leitores alguns quererão saber quais leis eclesiásticas foram violadas em cada caso, são feitas a seguir sumárias referências a elas.

A legalidade nos Estados de Direito e na Igreja

As Leis da Igreja estão compendiadas, não exaustivamente, no Código de Direito Canônico. O atual em vigor foi promulgado por S. João Paulo II em 1983, tendo sofrido ligeiras adaptações tanto por Bento XVI como por Francisco.

A necessidade de uma linguagem precisa, a fim de evitar ilegalidades e injustiças

Em todo Estado de Direito as leis, as normas jurídicas, os decretos, as sentenças judiciais e tudo quanto tem a ver com a preservação da Justiça devem utilizar uma linguagem precisa, a fim de evitar confusões e… injustiças!

De modo semelhante, a linguagem médica adequada faz com que as prescrições não sejam nocivas aos pacientes. Assim, um ortopedista, por exemplo, nunca determinará ao seu auxiliar para “consertar o osso quebrado”, mas escreverá “imobilizar o antebraço direito por fratura distal de rádio”, a fim de evitar consequências não desejadas. Nem todo mundo deve saber o que seja “fratura distal”, mas o operador de saúde, sim. O que dizer dos “operadores da justiça da Igreja”?

A Igreja é infinitamente mais do que um Estado de Direito baseado em acordos humanos. Instituída por Nosso Senhor Jesus Cristo, desde suas origens, ela tem leis e normas que regulam o comportamento e o relacionamento entre os fiéis, e destes com a hierarquia eclesiástica, estabelecendo as eventuais intervenções das autoridades eclesiásticas quando aparecerem atitudes discordantes da Doutrina ou da Moral ensinadas por Nosso Senhor Jesus Cristo, e transmitidas pelos Apóstolos. Lembremos alguns desses ensinamentos:

  • “O que Deus uniu não o separe o homem” (Mt 19, 6).
  • “Dai a César o que é de César, e a Deus o que é de Deus” (Mt 22, 21).
  • “Os libertinos, idólatras, adúlteros, efeminados, sodomitas, os ladrões, gananciosos, beberrões, maldizentes, estelionatários, ninguém desses terá parte no reino de Deus” (1Cor 6, 9-10).
  • “Himeneu e Ale­xandre, entreguei-os a Satanás, para que aprendam a não blasfemar” (1Cor 2, 20).
  • “Maldito seja o teu dinheiro e tu também, se julgas poder comprar o dom de Deus com dinheiro!”, retrucou São Pedro a Simão Mago (At 8, 20).

São exemplos de normativa que a Igreja mantém, pelo ensinamento de seu Divino Fundador, e da qual nenhuma normativa da Igreja pode abdicar sem deixar de ser Ela mesma.

Em outro artigo serão analisadas a ilegalidade e a injustiça do Decreto e o atentado à boa fama dos Arautos que representou a sua difusão na Sala de Imprensa do Vaticano.

Vejamos a seguir alguns dos “erros invalidantes” do Decreto em análise.

Erro material invalidante: tenta se “comissariar” uma associação inexistente

Em primeiro lugar, o Presidente dos Arautos do Evangelho, Sr. Felipe Lecaros Concha, fez notar que o Decreto visa “comissariar” uma “Associação internacional pública Arautos do Evangelho”. Ora tal ente não existe, nem na Igreja Católica, nem na sociedade civil.

O Decreto se dirige a uma associação que não existe: os Arautos não são uma “Associação pública”, mas “privada”

Os Arautos do Evangelho são uma “Associação Privada Internacional de Fiéis”. Assim, existe um fundamental erro que impede juridicamente aceitar a recepção de tal documento.

O Presidente dos Arautos do Evangelho exemplificou: é como se um oficial de justiça aparecesse na residência de um “Antônio da Silva” com uma notificação para “Pedro Rodrigues”. O Sr. Antônio não deveria receber tal notificação judicial, pois houve um erro de pessoa invalidante.

A diferença fundamental, “genética”, podemos dizer, entre uma “associação pública” e uma “associação privada”, na legislação da Igreja, está explicada nos cânones 116, 299 e 301 do Código de Direito Canônico.

Uma inexistente “instituição conhecida como Arautos do Evangelho”

No Decreto em análise se pretende “comissariar” a “Instituição conhecida como Arautos do Evangelho”; e ainda se acrescenta, numa total ignorância da realidade que se presume “comissariar”: “da qual fazem parte a Associação internacional pública de fiéis de direito pontifício Arautos do Evangelho, a Sociedade de vida apostólica clerical Virgo Flos Carmeli e a Sociedade de vida apostólica feminina Regina Virginum”.

Já apontamos acima não existir na Igreja Católica nenhuma “associação internacional pública” com esse nome.

Vejamos agora:

  • a total imprecisão jurídica do termo “instituição”;
  • a “problemática situação” de ignorância terminológica do autor do Decreto, no emprego da expressão “conhecida como”;
  • a “carência” de juridicidade ao dizer “dela fazem parte”.

Erro material invalidante: “a instituição… Arautos do Evangelho”

Afirmar que o Decreto tem como escopo uma “instituição conhecida como Arautos do Evangelho”, manifesta as problemáticas limitações e carências de conhecimento jurídico por parte de quem redigiu o Decreto.

O sentido técnico jurídico da palavra “instituição” é inexistente na legislação da Igreja.

Se nos ativermos ao Código de Direito Canônico, na versão portuguesa do Brasil, encontramos o termo quatro vezes (cân. 257, 384, 397, 793). Mas na Igreja a língua oficial, para as leis é o latim. Precisamos ver o que diz o “Código” no seu original latino nesses quatro cânones.

Em três dessas ocasiões a palavra latina empregada é “institutum, –i” (cc. 257, 397, 793), que deveria ser traduzida com mais precisão por “instituto”, ou seja, segundo o dicionário Aurélio, “entidade jurídica instituída e regulamentada por um conjunto orgânico de normas de direito positivo”.

No cân. 384 o termo latino empregado é “institutio, -onis” de diferente significado. Trata-se de algo realmente não jurídico, mas sociológico, de grupos com ou sem personalidade jurídica que, no caso, o bispo deve cuidar existam na diocese para alimentar a vida espiritual e intelectual dos sacerdotes. Tudo indica haver nesse cânon uma desejada imprecisão jurídica, pois a formação permanente da alma e do intelecto dos presbíteros não é coadjuvada, em muitíssimos casos, por estruturas jurídicas, mas por grupos mais ou menos informais. Ora, os “grupos informais” as “institutiones” não são objeto, nem podem ser, nem de regulamentação legal, nem, portanto, de comissariado. O termo latino “institutio, -onis” é empregado nesse mesmo sentido no cân. 777 1º, bem como em outros sentidos do termo profusamente (formação, ensina, instituído por, etc.).

Uma “família de almas” ou uma “família religiosa” ou qualquer outra expressão sociológica que possa corresponder ao latim “institutio”, pode servir para designar um conjunto de batizados que, seguindo as pegadas da vida exemplar de um Fundador suscitado por Deus, procuram, por diversos caminhos (vida familiar, vida consagrada, vida sacerdotal…), alcançar a santidade desejada por Nosso Senhor Jesus Cristo: “Sede perfeitos como o vosso Pai celeste é perfeito” (Mt 5, 48), e lembrada por S. Pedro: “Como é santo aquele que vos chamou, tornai-vos santos, também vós, em todo o vosso proceder” (1 Pd 1, 15-16).

Do carisma fundacional de Mons. João Scognamiglio Clá Dias surgiram três institutos jurídicos (três “instituta” dir-se-ia em latim) na Igreja Católica: a Associação privada Arautos do Evangelho, a Sociedade clerical Virgo Flos Carmeli e a Sociedade feminina Regina Virginum. Cada qual com “normas de direito positivo” que as distinguem com clareza. Não se circunscreve, no entanto, tal carisma fundacional a esses três institutos, pois abrange muitas outras instituições de fato existentes, sem personalidade jurídica eclesiástica.

Já foi explicada em outro artigo a total ausência de personalidade jurídica de uma “família de almas” ou “família religiosa”. Portanto de uma “institutio”; algo diferente de um “institutum”, o qual, em certos casos, pode ser objeto de um comissariado.

Portanto, o emprego inexato de “instituição…Arautos do Evangelho” torna esse Decreto inválido, evidenciando as carências jurídicas e a problemática situação de seu redator.

Erro material invalidante: “Instituição conhecida como…”

Referir-se a uma “Associação Privada Internacional de Fiéis” com a expressão “instituição conhecida como” manifesta um desconhecimento da realidade que se pretende abusivamente “comissariar”.

Em português a expressão “instituição conhecida como” é empregada para um grupo de incertos contornos, mas que goza de certa projeção em alguns ambientes, se bem que carente de “personalidade jurídica”.

Por exemplo, se alguém escrevesse “a instituição conhecida como PCC, Primeiro Comando da Capital” para se referir a uma organização criminosa atuante na cidade de São Paulo, estaria utilizando uma terminologia clara. Mas seria absolutamente impróprio dizer “a instituição conhecida como CPC, Comando de Policiamento da Capital”, pois este é um organismo público da Polícia Militar do Estado de São Paulo absolutamente transparente na sua composição e autonomia de governo.

O impróprio uso da expressão “conhecida como” indica estar se referindo a um grupo não jurídico, talvez uma “família de almas”; e mostra mais uma razão da invalidade do Decreto, por estar querendo tomar como objeto algo impossível de ser “comissariado”. Mais uma lamentável carência na redação do Decreto, que o torna inválido por erro material.

Erro material invalidante: “…dela fazem parte…”

Se a expressão “instituição conhecida como” quer se referir (por um erro crasso de redação) à “Associação Privada Internacional de Fiéis Arautos do Evangelho”, dela não “faz parte” nenhuma das duas “Sociedades de Vida Apostólica” referidas (Virgo Flos Carmeli e Regina Virginum).

Exemplifiquemos: não se pode dizer que uma rosa e um lírio “fazem parte” de um vaso de alabastro no qual foram colocadas para ornar uma imagem de Nossa Senhora. Uma flor é diferente da outra flor, e nenhuma delas se confunde com a pedra, que imaginamos artisticamente entalhada. Trata-se de três realidades materiais diferentes, ainda que ao olhar de uma balbuciante criança possa parecer constituírem um único objeto. Ignorâncias da mentalidade infantil… não juridicamente formada. Talvez carências ou problemáticas situações intelectivas…

Se a expressão “instituição conhecida como” tenta se referir à “família de almas” nascida do carisma fundacional de Mons. João, a qual tem se desenvolvido em “formas jurídicas autônomas e independente juridicamente”, o Decreto, como acima apontado, tenta “comissariar” algo “incomissariável”: uma realidade sociológico-religiosa.

O documento de presumido comissariado se apresenta como um “Decreto Penal”

No sistema jurídico da Igreja Católica, os Decretos são um dos elementos à disposição dos governantes para aplicar a “suprema lei da Igreja: a salvação das almas” (cân. 1752). Estão eles regulados, nas suas generalidades, pelos cânones 48-58, e nos seus detalhes, segundo o gênero de Decreto, em outras partes do Código, às quais depois nos referiremos.

Decretos penais são sujeitos a normas processuais que não foram respeitadas

Um Decreto pode ter várias finalidades (cân. 48) e interessa considerar ser ele um instrumento utilizado, em certas ocasiões, “para tomar uma decisão”. A este respeito comenta Sanz que tal decisão pode visar, entre outros objetivos, “dar fim a uma controvérsia, impor uma pena por via administrativa” (SANZ, MARIANO, Comentario al Libro I del CIC, in J. L. ACEBAL, Código de Derecho Canónico – edición bilingüe comentada, Madrid, 2001, 17-119).

Aplica-se ao Decreto em análise, pois ele tenciona “impor uma pena por via administrativa”.

O que é uma “pena”, na linguagem jurídico-canônica? O que é “impor uma pena por via administrativa”, segundo as Leis da Igreja?

O que é uma “pena” em linguagem jurídico-canônica

O cân. 1312 § 2 define a pena como a “privação de um bem espiritual ou temporal”.

Arrieta comenta que “a pena priva de direitos subjetivos os quais fazem parte do patrimônio jurídico do qual o destinatário [da pena] é titular” (ARRIETA, Juan Ignacio, et alii. Codice di Diritto Canonico e leggi complementari, Roma, Coletti a San Pietro, 2004).

Um secretário paroquial legalmente contratado, por exemplo, tem o “direito subjetivo” de realizar sua função, seu “oficio”; e a privação dessa função, ou seja, a rescisão do contrato laboral, precisará ater-se às formalidades da lei. O pároco não pode unilateralmente proibi-lo de entrar na secretaria ou de exercer seu emprego.

O Decreto tenta proibir o exercício do cargo de Presidente e dos Conselheiros, privando-os de seus direitos subjetivos

No caso concreto, o Decreto tenta privar o Presidente Geral e seu Conselho de “todos os direitos e os deveres que o Direito universal da Igreja e o Direito próprio dos Institutos atribuem”, delegando tais direitos e deveres aos Comissários nomeados.

A privação dos direitos subjetivos do Presidente e do Conselho de exercerem seus cargos (seus “ofícios”, em linguagem jurídico canônica) é considerada, pelo cân. 1336 § 1 3º, como uma das “penas expiatórias” claramente tipificadas. Com efeito, tal “pena” consiste na “proibição de exercer” “um poder, ofício, encargo, direito”.

O Decreto de presumido comissariado visa proibir o exercício dos ofícios de Presidente Geral e de seu Conselho.

O Decreto de presumido comissariado deve ser qualificado como um “Decreto Penal”

Que um Decreto de Comissariado deva ser considerado um Decreto Penal pode ser visto, por exemplo, nos comentário de Aznar Gil (professor, entre outros títulos, de Direito Penal, na Universidade de Salamanca) a diversos documentos relativos ao comissariado realizado na União Lumen Dei (Anotaciones sobre el nombramiento de un Comisario pontificio, in REDC, 167 (2009) 721-739). Aznar frisa que no caso de Lumen Dei foi aberto um “procedimento penal administrativo (cân. 1720)”, o qual conclui com “uma pena expiatória atenuada proibindo exercer qualquer ofício” e cita o cân. 1336 § 1 3º, a que fizemos referência como devendo ser aplicado ao Decreto em análise que o card. Damasceno tentou aplicar.

Estamos, pois, diante de um Decreto Penal que se apresenta como conclusão de um processo administrativo.

Ora se, como vimos, o comissariado é uma “pena” tipificada (proibição de exercer um ofício), interessa considerar como foi o processo administrativo que levou a exarar esse Decreto.

O “processo penal administrativo” que levou a exarar o Decreto de presumido comissariado

A Igreja, na sua santidade e no seu desejo de tutelar os direitos dos mais pobres, dos mais frágeis, dos mais desamparados, considera que nenhuma pena deve ser imposta sem a realização prévia de um processo.

Este processo penal poderá ser, a partir de determinado momento, judicial ou administrativo, no seu desenvolvimento; mas tem sempre inicio de modo administrativo por uma “investigação prévia” (cân. 1717). Ele teve lugar, para os Arautos do Evangelho,, com a Visita Apostólica.

Com efeito, o Decreto de D. Braz de Aviz dando início a uma Visita Apostólica, de 23 de junho de 2017, apresentava todos os elementos que o cân. 1717 declara recomendar a uma  investigação a fim de apurar “os fatos e as circunstâncias, e a imputabilidade” (cân. 1717) de algum delito. Afirma o Decreto de Visita ser sua finalidade:

Compreender o real fundamento das problemáticas apontadas, bem como as causas que as determinaram, e as responsabilidades atribuíveis a cada religioso[1].

O Decreto de Visita emprega os conceitos do cân. 1717 com outros termos: “as problemáticas” (o cânon diz “os fatos”), “as causas” (o cânon diz “as circunstâncias”), “as responsabilidades” (o cânon diz “a imputabilidade”).

Essa parte processual – a Visita Apostólica a fim de determinar “os fatos e as circunstancias e sobre a imputabilidade”, ou “as problemáticas, as causas e as responsabilidades” – desenvolveu-se por via administrativa, como é de praxe na Igreja (ver comentário de: ACEBAL, Juan Luis, Comentario al Libro VII cc 1400-1731 del CIC, in J. L. ACEBAL, Código de Derecho Canónico – edición bilingüe comentada, Madrid, 2001, 733-884[2]).

Tanto D. Damasceno como D. Aparecido declararam ser a Visita Apostólica a investigação prévia à exaração do Decreto de presumido comissariado.

Não foi respeitada a normativa do cân. 1718

Completada a Visita Apostólica, ou seja, a “investigação prévia” de que fala o cân. 1717 § 1, o cân. 1718 § 1 explica:

Quando parecerem suficientemente coletados os elementos, o Ordinário decida:

1º se é possível promover processo para irrogar ou declarar a pena;

2º se isso é conveniente, levando-se em conta o cân. 1341;

3º se se deve proceder por via judicial ou, caso a lei não proíba, se se deve proceder por decreto extrajudicial.

Com efeito, o Decreto de presumido comissariado declara que “o relatório [dos visitadores] confirmou a existência de situações problemáticas e de grave carência”. Ou seja, no juízo do card. Braz de Avis as “carências” e “problemáticas situações” pareceram “suficientemente coletadas”.

Cabia ao Dicastério decidir se promove um processo judicial ou administrativo, para emendar as “carências” e consertar as supostas “situações problemáticas”, como dizem os itens 1º e 3º.

Nenhum destes procedimentos foi iniciado (nem administrativo nem judicial), mas simplesmente foi exarado o Decreto de presumido comissariado.

O incumprimento da normativa do cân. 1718 § 1 1º  3º torna o Decreto inválido.

Não foi respeitada a normativa do cân. 1341

O item 2º do cân. 1718 § 1 contém uma importantíssima observação, declarando a necessidade de levar em conta o prescrito no cân. 1341, o qual diz:

Só se decida a promover o procedimento judicial ou administrativo para infligir ou declarar penas, quando vir que nem com a correção fraterna, nem com a repreensão, nem por outras vias de solicitude pastoral, se pode reparar suficientemente o escândalo, restabelecer a justiça e corrigir o réu.

Ora, patenteia-se mais uma infração grave no método promovido pelo Cardeal Braz de Avis: não empregou nenhuma “via de solicitude pastoral”, nem “correção fraterna” nem “repreensão” para corrigir as presumidas “carências” ou “situações problemáticas” antes de exarar o Decreto de presumido comissariado.

A violação da normativa do cân. 1341 e do cân. 1718 § 1 2º torna o Decreto de presumido comissariado inválido.

Decreto “injusto e inválido”

O Decreto em análise quis declarar a pena de “proibição de exercer” os ofícios de Presidente Geral e Conselheiros Gerais da Associação Arautos do Evangelho, como foi visto.

Tal Decreto não respeitou a normativa do cân. 1718, nem os cuidados pastorais do cân. 1341.

Os erros do Decreto não são apenas um problema de invalidade, mas também de injustiça

A pena não apenas tornou-se inválida, mas também injusta, como bem explica Cabreros de Anta. O ilustre claretiano, professor em Salamanca, esclarece que para uma pena ser justa três quesitos são “substanciais”, e a ausência de um qualquer deles torna a pena “injusta e inválida” (CABREROS DE ANTA, Marcelino. Comentarios al Código de Derecho Canonico y Legislación Complementaria: cc 1-270, 1552-1924, 1999-2141, in L. MÍGUELES DOMINGUEZ (cur.). Código de Derecho Canónico y Legislación Complementaria: Texto latino y versión castellana, Madrid, 1976):

Para que a pena seja justa é requerido: a) que tenha sido imposta por um juiz ou superior legitimo; b) por uma causa justa e razoável; c) observando, na forma de impor a pena, as prescrições canônicas. Se faltar algum destes quesitos a pena é injusta e inválida, pois todos eles são substanciais.

A respeito da ilegitimidade do Card. Braz de Aviz para decretar o comissariado de uma Associação Privada Internacional de Fiéis, já foi mostrada a sua total incapacidade. Portanto, essa ilegitimidade do autor do Decreto torna a pena “injusta e inválida”.

A carência de “causa justa e razoável” é uma razão a mais para tornar o Decreto “injusto e inválido”.

A ausência de observação da “forma de impor” e das “prescrições canônicas” ficou patenteada acima, configurando a terceira razão para a “invalidez e injustiça” do Decreto exarado por D. Braz de Aviz.

Um Decreto “irritum infectumque”

A linguagem jurídico-canônica da Igreja tem vinte séculos, ao longo dos quais foram sendo cunhadas expressões e termos que qualificam uma situação sem muitas explicações, ao menos para os conhecedores da terminologia técnica.

Considerando os graves erros contidos no Decreto, concluímos não ser este apenas ilegítimo: ele simplesmente não existe

Considera-se, no Direito da Igreja, que uma norma, uma lei, um decreto, um ato jurídico são “irritus” (do latim, “ausente dos ritos”, ou seja, das formas externas necessárias para sua validade) quando faltam elementos necessários para sua liceidade, ainda que, eventualmente o ato seja válido. Por exemplo, a ordenação de um bispo realizada sem mandato da Sé Apostólica: o presbítero assim sagrado terá recebido validamente a plenitude do sacerdócio, porém tendo sido ela conferida ilegitimamente não pode ele exercer com legitimidade nenhuma função episcopal.

Porém, quando há erros substanciais relativos à essência ou à substancia do ato, da norma, do decreto, ele deve ser considerado “infectus” (do latim “in” + “factus”, ou seja inexistente).  Por exemplo, se um prelado tentasse conferir a ordenação sacerdotal a uma mulher, o ato seria absolutamente nulo.

Quando as duas circunstâncias de ilicitude e nulidade existem, o ato ou o documento é denominado “decretum irritum infectumque”.

Essa é a qualificação jurídico-canônica do Decreto de presumido comissariado assinado por D. Braz de Aviz, que D. Raimundo Damasceno Assis e D. José Aparecido Gonçalves de Almeida apresentaram, dia 18 de outubro de 2019, ao Presidente Geral da Associação Internacional Privada de Fiéis Arautos do Evangelho, e seu Conselho.

Cabe um recurso contra esse Decreto?

Durante a notificação do Decreto, D. José Aparecido levantou a possibilidade de os Arautos apresentarem um recurso ao Santo Padre pedindo a reformulação do Decreto.

O canonista presente fez notar que tal recurso teria sentido se o Decreto fosse meramente “irritum”, mas, tratando-se de um “Decretum infectum”, não tem sentido um recurso contra algo nulo e inexistente, ausente de qualquer valor jurídico.

Fica, por fim, salvaguardado aos Arautos do Evangelho o recurso por atentado à boa fama, pela injustiça cometida e por outras ilegalidades na exaração desse Decreto e pela forma de sua divulgação.


(*) José Manuel Jiménez Aleixandre, espanhol, cursou Arquitetura e Jornalismo na Universidade Complutense de Madrid, e é Doutor em Direito Canônico pela Pontifícia Universidade São Tomás de Aquino (Angelicum) de Roma.


[1]comprendere la reale fondatezza delle problematiche rese note, nonché le eventuali cause che le hanno determinate, le responsabilità attribuibili ai singoli religiosi”.

[2] “El proceso penal canónico se desarrolla en dos fases claramente diferenciadas y de naturaleza jurídica diversa. La primera fase, la investigación previa, es de naturaleza estrictamente administrativa, y la segunda, si se llega a ella, puede ser judicial o administrativa, según que se decida proceder por vía judicial o por decreto extrajudicial. La investigación previa se inicia cuando llega a conocimiento del Ordinario la noticia de un posible delito, bien porque se trata de un hecho notorio, bien por denuncia previa o rumor existente en la comunidad. Entonces el Ordinario debe investigar los hechos y las circunstancias, de manera especial si el delito es imputable de manera deliberada al presunto autor” (p. 879).

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2 comentários

  1. JN Axt Veuillot-Krone disse:

    Pequeno curso de Direito Canônico. O card. Braz de Aviz e seus colaboradores poderiam aproveitar este artigo para se habilitarem no futuro – e depois de terem adquirido outros conhecimentos – a algum cargo subalterno em dicastérios romanos. Com os conhecimentos que demonstraram não ter, deveriam ser sumariamente demitidos de seus cargos atuais por incompetência.

  2. Maria Lucilia Seraidarian disse:

    #AmoOsArautos

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