Análises

Por que a Associação Arautos não é comissariável?22 minutos para ler


O presente artigo se refere à legislação da Igreja, em particular, ao Código de Direito Canônico, promulgado em 1983 por João Paulo II.

A conotação do termo “comissário”

O termo “comissário” na linguagem corrente no Brasil refere-se habitualmente a uma autoridade policial, mas também tem outros usos, como na expressão “comissário de bordo”, ou seja, quem presta serviço aos passageiros durante um voo.

Na História, o termo tem ressonâncias pouco agradáveis, seja nos “comissários” do “Comité de Salut Publique” na Revolução Francesa, cumpridores da “lei dos suspeitos”, condenando sem julgamento; ou nos “comissários do povo” da Revolução comunista russa, executores de migrações forçadas de multidões para a Sibéria; ou nos “comissários políticos” da República espanhola na guerra de 1936, os quais fácil e prontamente enviavam quem deles discordasse para as terríveis “checas”, onde a pessoa era torturada até a morte sem julgamento!

Já na linguagem jurídico-canônica – quer dizer, a linguagem jurídica da Igreja – o termo “comissário” tem outro sentido, atualmente.

O que é um “comissariado” na lei da Igreja atualmente

Nomear um “comissário” (na linguagem jurídica da Igreja, em nossos dias) é suspender uma pessoa de sua capacidade de governo e colocar outra em seu lugar.

Na linguagem comum do Brasil pode ser assimilado ao funcionário denominado “interventor”, a pessoa nomeada pelo poder central para substituir um governador, um prefeito ou outra autoridade, em razão de grave desvio de conduta.

Assim, podemos dizer que a noção atual de “comissário” na linguagem da Igreja, corresponde ao conceito que o brasileiro médio tem de “interventor”, no mundo civil.

Diferença entre entes públicos e entes privados

Mas aquilo que o governo federal pode fazer (e até talvez tenha obrigação de fazê-lo em certos casos), ou seja, nomear um “interventor” em relação a funcionários públicos (como governador, prefeito ou outros), não pode ser feito em relação ao gerente de uma fábrica de, digamos, sabonetes, de propriedade particular. Ou seja, nomear um “interventor” para essa empresa privada.

A fábrica “Sabonetes Limpe Bem”, dos irmãos Aguiar, por exemplo, foi originada por livre iniciativa de uma ou várias pessoas, e governa-se segundo os estatutos da Sociedade civil criada no ato fundacional. A fábrica é um ente privado porque nascido do livre acordo de particulares.

Os organismos de governo (nacionais, estaduais, municipais) são entes públicos porque são criados pelo governo legitimamente estabelecido.

Os entes públicos surgem por iniciativa e vontade do governo; os entes privados, por iniciativa e vontade de particulares.

Entende-se, pois, a fundamental diferença entre um ente público e um ente privado. Os primeiros surgem por iniciativa e vontade do governo; os segundos, por iniciativa e vontade de particulares. Os primeiros, os públicos, podem ser objeto de intervenção da autoridade pública; os segundos, os privados, não. Eles poderão ser dissolvidos, fechados, etc., não, porém, “intervencionados”.

No Brasil, como em qualquer país do mundo, existe uma enorme variedade de entes públicos (em nível federal, estadual e municipal) e outra imensa abundância de entes privados (sociedades de comércio, associações esportivas, etc.).

Entes públicos e entes privados na Igreja

De modo semelhante, na Igreja existem diversas agrupações com finalidades e características distintas; até muito mais diferentes do que as existentes entre uma câmara municipal (ente público) e um clube esportivo (privado).

Além dos organismos de governo da Igreja (as dioceses, com seus bispos, seus Conselhos de Consultores e Presbiterais, as Conferências episcopais, as paróquias, etc.), existem sociedades chamadas “públicas”, como são todos os institutos religiosos (jesuítas, irmãs da caridade, franciscanos, clarissas, carmelitas, salesianos, etc.), e algumas “associações públicas” de clérigos ou de fiéis. Todos estes entes “públicos” podem ser “comissariados” pela autoridade de que dependem. Se são de caráter diocesano, pelo bispo do lugar; se são de caráter internacional, pela Santa Sé.

Mas também existem “associações privadas de fiéis”, nascidas do livre acordo entre alguns católicos que desejam se entreajudar para procurar a santidade, própria e de outros, pela prática de atos de caridade, de piedade, de formação, etc.

A Igreja não tem nenhum poder sobre essas “associações privadas de fiéis”?

O dever das autoridades da Igreja de velar pela moral e boa doutrina, tanto dos indivíduos como dos entes públicos e privados

Sobre todas as pessoas, como sobre todos os entes existentes na Igreja, sejam eles públicos ou privados, os pastores devem, ao mesmo tempo, exercer um papel de estímulo e de vigilância, no que se refere à prática da moral, à difusão de doutrinas em conformidade com o ensinamento da Igreja e à obediência à disciplina eclesiástica. O que é, geralmente, resumido na frase latina “de fide et moribus”, vigiar a respeito da fé e da moral, tanto das pessoas individuais como quando agrupadas em entes, sejam estes públicos ou privados.

Os pastores exercem, na Igreja, um papel de estímulo e de vigilância em matéria de moral, doutrina e disciplina eclesiástica

Por exemplo, se num seminário diocesano (ente público da Igreja) se dão frequentemente casos contrários à moral, o bispo diocesano e até a Santa Sé têm a obrigação de intervir, até mesmo “comissariando” esse seminário. Na História recente foram registrados, infelizmente, vários casos assim. O mesmo se diga se num seminário são ensinadas práticas contrárias à Fé, como seria promover não a liturgia, o Ofício Divino ou a recitação do terço (tudo isto é estabelecido pelo Direito Canônico), mas cerimônias de umbanda, macumba ou outros tipos de sincretismo. A autoridade eclesiástica teria a obrigação de “comissariar” quem promove tais atos contrários à Fé católica e à sagrada liturgia.

Se um instituto religioso (ente público) é causa de escândalos morais internos, ou promove ensinamentos contrários à doutrina da Igreja (por exemplo, membros que abandonam o instituto para ingressar na guerrilha, ou que lecionam a favor do aborto, da eutanásia ou do infanticídio), a Santa Sé pode “comissariar” esse instituto, substituindo temporariamente os seus superiores por outros nomeados pelo Vaticano. E até em certos casos deve fazê-lo, para o bem das almas.

Pois o bem das almas, a salvação eterna delas e o conduzi-las para o Céu, é chamada a suprema lei da Igreja: “a salvação das almas, na Igreja, deve ser sempre a lei suprema” (cf. CIC, c. 1752). Tirar as pessoas das garras do pecado e do demônio, e uni-las sempre e cada vez mais a Cristo nosso Redentor, à sua Mãe Santíssima, para que cheguem a estar com Eles por toda a eternidade!

Em relação aos entes públicos, às vezes o bem das almas exige que tais entes sejam “comissariados”.

E os entes privados?

A vigilância que a autoridade da Igreja deve ter sobre a doutrina e a moral das associações privadas

Já com as associações privadas os pastores devem incentivar sua formação por iniciativa dos fiéis, aprovar aquelas que dão mostras de conduta moral irrepreensível de seus membros, de ensinamentos em acordo com a doutrina católica, de promoção entre os fiéis de práticas de piedade, seja pela assistência à Missa, frequência aos sacramentos, catequese, regularização de situações matrimoniais, etc., ou por devoções privadas legítimas, como o terço, as novenas, a adoração ao Santíssimo Sacramento, etc.

Se uma associação promovesse a participação, não em novenas e atos litúrgicos, mas em cerimônias interconfessionais como candomblé, a autoridade da Igreja deveria tomar medidas. E, no caso de uma associação pública, talvez “comissariá-la”; se fosse uma associação privada, não sendo possível “comissariar” e existindo alguma causa justa, grave e comprovada, poderia negar o reconhecimento jurídico-canônico. Ou até declarar que ela, enquanto associação, não é mais reconhecida pela Igreja.

Os Arautos do Evangelho são uma associação privada de leigos

Os Arautos do Evangelho nasceram, cresceram, e se desenvolveram como um grupo de fiéis leigos desejosos de “participar ativamente na comunhão e na missão da Igreja” como leigos, assistindo aos atos de culto, promovendo devoções privadas, editando e difundindo livros de formação cristã, ajudando os párocos na evangelização, os católicos na sua vida de família, atraindo os não batizados à fé, reconduzindo os que se afastaram da prática eclesial à sua reinserção na respectiva paróquia, etc.

Os Arautos do Evangelho nasceram, cresceram, e se desenvolveram como um grupo de fiéis leigos, empenhados em promover “a íntima unidade entre a vida prática e a fé”

Isso tornou-se público e notório no Brasil como nos inúmeros países onde há arautos empenhados em promover “a íntima unidade entre a vida prática e a fé”, como consta na sua finalidade declarada nos Estatutos (cf. art. 2).

A “família religiosa” dos Arautos

De dentro dos Arautos (como tantas vezes sucede com as fundações originadas por um carisma muito abrangente) surgiram pessoas que queriam levar uma vida “mais radical”, com a radicalidade evangélica de uma dedicação integral, na pobreza, na castidade, na obediência. Constituíram, assim, duas associações públicas na Igreja: a “Sociedade clerical Virgo Flos Carmeli”, e a “Sociedade feminina Regina Virginum”. Cada uma com suas constituições, seus superiores, seu ordenamento interno, como de pessoas consagradas (segundo a terminologia jurídico-canônica), ou como religiosos (segundo o uso popular).

As relações entre os membros da Associação de fiéis Arautos do Evangelho e estes que – aspirando a uma vida mais perfeita querem seguir a Deus “mais de perto”, “com coração indiviso” se consagrando só a Deus “na virgindade ou no celibato, dom da graça divina que o Pai concede a alguns” (cf. Lumen Gentium, 42) – constituíram sociedades públicas, é como as existentes entre irmãos, todos filhos de um casal prolífico: cada um constitui sua família independente, mas não rompe com outro irmão, pois todos têm um pai e uma mãe comuns.

O surgimento, de dentro do carisma dos Arautos do Evangelho, desses grupos de homens e mulheres que abraçam a vida religiosa, não impede que os milhares – podemos até dizer milhões – de membros da Associação Arautos do Evangelho continuem sua vida de batizados que procuram, nas realidades temporais, viver uma vida em conformidade com os Mandamentos da Lei de Deus e os ensinamentos da Igreja Católica.

Para designar tanto os membros da Associação Arautos do Evangelho, como os integrantes da “Sociedade Clerical de Vida Apostólica Virgo Flos Carmeli”, e as irmãs da “Sociedade Feminina de Vida Apostólica Regina Virginum”, alguns têm empregado a expressão “família religiosa dos Arautos”. Ela tem um significado sociológico, não jurídico. Mais ou menos como quando os papas falam da “família carmelitana”, para se referir aos diversos institutos surgidos de um mesmo carisma: a devoção a Nossa Senhora do Carmo. Entre eles há diferenças, e em certos séculos até divisões, quase “irreconciliáveis”, como entre “calçados” e “descalços”, irmãs missionárias e freiras de clausura, ordens terceiras, etc. Porém, os papas às vezes referem-se a todos eles como os integrantes da “família religiosa carmelitana”. No entanto, ao se tratar de assuntos jurídicos (como poderia ser um comissariado de alguns desses entes públicos) seria indispensável precisar se o comissariado penaliza a Ordem Masculina dos Carmelitas Descalços ou a Ordem Carmelita da Antiga Observância, se visa um determinado convento de clausura (pois cada um deles é juridicamente independente, constituindo um ente público singular e autônomo), ou as Carmelitas Missionárias. Cada um tem constituições e governos próprios, se bem que todos surgiram de um mesmo carisma fundacional: a devoção a Nossa Senhora do Carmo, que alguns fazem remontar ao profeta Santo Elias e suas façanhas contra a idolatria no Monte Carmelo (cfr. 1Rs 18).

A Associação Arautos não pode ser “comissariada”

Vemos como, em conformidade com a legislação da Igreja, a Associação Privada Internacional de Fiéis Arautos do Evangelho está, do mesmo modo como todos os batizados, sujeita à vigilância dos pastores no que diz à doutrina e aos bons costumes (“de fide et moribus”); mas, em se tratando de um ente privado, não pode ser objeto de um “comissariado”, como equivocadamente queria o Decreto em caso.

A Associação Arautos do Evangelho está sujeita à vigilância dos pastores no que diz à doutrina e aos bons costumes, mas não pode ser objeto de um comissariado

Com efeito, o comissariado previsto pelo cânon 318 diz respeito exclusivamente às sociedades ou associações públicas.

Do mesmo modo como a hipotética Fábrica de Sabonetes, inventada acima para exemplificar, não poderia ser objeto de intervenção federal; poderia até ser fechada se forem provadas judicialmente ilegalidades, mas seria preciso apresentar as provas que justificassem esta ingerência na vida do ente privado. Se não houver provas (e se não foram apresentadas devem ser consideradas inexistentes), o fechamento da Fábrica de Sabonetes constituirá uma ilegalidade e uma injustiça, um atentado contra a livre iniciativa de todo cidadão e de todo brasileiro honesto que procura colaborar no esforço comum de levar adiante o progresso deste imenso Brasil.

Encontro de D. Damasceno com o Presidente da Associação Arautos do Evangelho

Quando o Card. D. Raymundo Damasceno Assis esteve na sede central da Associação Privada de Fiéis Arautos do Evangelho (em data de 18 de outubro passado), a fim de apresentar o Decreto do pretenso Comissariado, foi recebido pelo Presidente Geral, Sr. Felipe Lecaros Concha, juntamente com o seu Conselho Dirigente. O cardeal vinha acompanhado por D. José Aparecido Gonçalves de Almeida, Bispo Auxiliar de Brasília e doutor em Direito Canônico, citado no dito Decreto como “auxiliar” de D. Damasceno.

No discurso, o Sr. Felipe Lecaros deixou claro que “comissariar uma Associação Privada infringiria o direito sacro e inviolável dos fiéis de associarem-se na Igreja com seus próprios estatutos e suas próprias autoridades”.

Falta de competência jurídica em quem emitiu o Decreto de comissariado

Além do mais, o Presidente da Associação Arautos do Evangelho fez notar que assim como cada ente privado, na sociedade civil, depende organicamente de uma autoridade – por exemplo, o comércio de uma cidade será regulado por normas municipais, enquanto a habilitação e o trânsito rodoviário pelo DETRAN e o DENATRAN, ou se se tratar de aviação a competência recai na ANAC –, assim também os Arautos do Evangelho, sendo uma “associação privada internacional de fiéis”, dependem organicamente do Dicastério para os Leigos, a Família e a Vida. No entanto, o Decreto trazido pelo Card. Damasceno provém da Congregação para os Institutos de Vida Consagrada e Sociedades de Vida Apostólica, ou seja, o que na linguagem comum chamam-se “os religiosos”. Patenteia-se, pois, uma “falta de competência” para qualquer tipo de intervenção numa associação privada de fiéis.

O Decreto diz ter existido um “acordo” entre esses dois órgãos do governo da Igreja; porém, para ter valor jurídico não basta um “acordo” cujos termos são desconhecidos (nem sequer há o número de protocolo do tal documento de “acordo”), mas torna-se necessária uma “delegação formal”, a qual não aparece em nenhum lugar, o que levanta a suspeita de não ter existido, visto não ser este o único erro no texto do Decreto.

Alguns dos erros de atribuição, no Decreto que tentava “comissariar” os Arautos

Houve erros fundamentais de atribuição:

  1. De quem ditou o Decreto (a Congregação para os Religiosos), que não pode emanar decretos para uma associação privada;
  2. Na qualificação dos Arautos do Evangelho como “associação pública”, quando se trata de uma “associação privada” (com alvar e surpreendente ignorância da realidade que se quer “comissariar”);
  3. No desejo de impor uma penalidade inaplicável, ou seja, “comissariar” uma associação privada (como seria inaplicável querer tirar a carteira de habilitação a um rapaz de seis anos, incapaz de a ter).

Damasceno e D. Aparecido concordaram com a existência de erros relevantes no Decreto

Esses erros foram reconhecidos tanto pelo card. D. Raymundo Damasceno Assis, quanto pelo canonista que o acompanhava, D. José Aparecido Gonçalves de Almeida

Esses erros foram reconhecidos tanto pelo card. D. Raymundo Damasceno Assis, quanto pelo canonista que o acompanhava, D. José Aparecido Gonçalves de Almeida, tendo ambos declarado se tratar de questão relevante, a qual seria levada por eles à Santa Sé, como será narrado mais adiante.

Damasceno e D. Aparecido declaram não saber quais são as acusações que levaram a emitir esse Decreto de “comissariado”

Além disso, reiteraram os dois prelados – presumidos comissários dos Arautos – não conhecerem nenhuma outra informação acusatória, além das generalidades que constam no texto do Decreto, no tocante às “problemáticas” e “carências” a serem corrigidas nos Arautos.

Isso gera uma verdadeira situação de impossibilidade de realização de sua função de comissários. Com efeito, como pode um médico ajudar um paciente, do qual desconhece a doença?

Afirmaram, ademais, não terem tido acesso nem ao Informe Final dos Visitadores, nem ao dossiê de “Respostas às Últimas Perguntas” (572 páginas de texto, com mais 18.000 páginas de documentos e depoimentos) proporcionado pelos Arautos.

Todos esses elementos indicam não apenas a incompetência em quem emitiu o Decreto de presumido comissariado, mas a incapacidade dos presumidos comissários de exercer a função de modo eficaz e válido, por ignorância dos fatos sobre os quais pretendiam interferir “para ajudar”, como declarou D. Damasceno.

A doutrina jurídica da Igreja, a respeito da impossibilidade de comissariar associações privadas de fiéis

Na conversa com os dois Prelados, o Presidente da Associação Arautos do Evangelho, Sr. Felipe Lecaros, leu também opinião de insignes comentaristas da Lei Canônica, como o bispo canonista, especialista em associações de fiéis, D. Lluis Martinez Sistach, o qual afirma que:

“Somente para as associações públicas se prevê que a autoridade eclesiástica competente, em circunstâncias especiais e quando o exijam graves razões, possa designar um comissário que em seu nome guie temporalmente a associação. No caso das associações privadas, dado que a autoridade eclesiástica não intervém na designação do presidente, não existem razões para que intervenha em sua destituição e nomeação de um comissário” (cf. Ius Canonicum, v. 26, n. 51, 1986, p.173).

Isso tem sido reconhecido até pela justiça civil de países que assinaram Concordata com a Santa Sé, como Portugal. Um Acórdão no Tribunal de Relação de Coimbra, Portugal, de 17 de maio de 2011, por votação unânime, decidiu:

“As associações privadas de fiéis estão sujeitas à vigilância das autoridades eclesiásticas competentes, porém não pode a autoridade eclesiástica competente, a coberto desse dever de vigilância, designar comissários que representem a Associação”.

Testemunho mais significativo é dado pelo próprio Dicastério para os Leigos, a Família e a Vida na tentativa de comissariado da Associação privada de fiéis Palavra Viva, por parte da Arquidiocese de Diamantina (MG). Tal tentativa foi declarada injusta e ilícita pela Santa Sé, em 15 de março de 2016, nos seguintes termos:

“No tangente à legitimidade das medidas, a nomeação de um comissário (cân. 318) é indicada no direito entre as medidas previstas apenas para as associações públicas de fiéis (cân. 312-320) e, portanto, não podem ser aplicadas a uma associação privada de fiéis. Portanto, a nomeação de um comissário neste caso não é legítima” (cf. Decreto 264/16/S-61/B-169, 15/3/2016).

Este processo contencioso-penal, entre a Arquidiocese de Diamantina e a Associação privada Palavra Viva, estendeu-se por vários anos, sendo precisas diversas intervenções do governo central da Igreja, sempre a favor da liberdade da associação, e condenando a tentativa injusta do arcebispo. O Pontifício Conselho para os Leigos – recentemente substituído em suas atribuições pelo Dicastério para os Leigos, a Família e a Vida – reafirmou ser essa interpretação da Lei da Igreja: “A nomeação de um comissário neste caso [de uma associação privada de fiéis] não é legítima”, diz ainda o Decreto.

Isso foi ratificado por Decretos do mesmo organismo vaticano de 23/3/2016 e 25/4/2016, e pelo Decreto do Dicastério para os Leigos, a Família e a Vida, de 18/10/2016 (070/16/S-61/B-169), o qual, além do mais, condena o arcebispo, que intentou interferir na legítima vida cristã dessa associação privada de fiéis, ao ressarcimento de danos por um valor de 64.270 euros, mais 5.000 euros pelos atos ilegítimos contra eles perpetrados por parte da autoridade eclesiástica, e outros valores que omitimos por brevidade.

A respeito exatamente do presumido comissariado dos Arautos, o professor Eduardo Baura, da Universidade do Opus Dei, em Roma, declarou que o comissariado de uma associação de fiéis “não está previsto, em razão da autonomia de que gozam”. O que há, como ressaltado acima, é a obrigação de “vigiar” e, acrescenta o professor da Opus Dei, “chegando o caso, dissolver a associação, se for necessário” (cf. Vida Nueva, 26/10/2019).

Haverá alguém que, unilateralmente, sem provas, sem julgamento, sem possibilidade de defesa, com base em acusações caluniosas tiradas da internet, algumas anônimas, outras de pessoas que não estão em comunhão com a Igreja Católica, dê ordem de “dissolver os Arautos do Evangelho”? A quem beneficiaria essa dissolução arbitrária?

Damasceno e D. Aparecido concordaram com o posicionamento dos Arautos

Deve-se destacar que as razões apresentadas pelo Presidente Felipe Lecaros foram levadas em consideração pelos ilustres visitantes.

Em 18 de outubro de 2019, o bispo canonista D. Aparecido, enviou uma mensagem a um dos Arautos do Evangelho atestando:

“Quanto à situação da associação Arautos, vou preparar uma carta [para a Santa Sé] para explicar que há de fato uma objeção plausível: a que se refere à natureza jurídica da Associação e ao tipo de intervenção possível por parte da autoridade competente. A questão da natureza privada da associação, esta sim é a objeção real e relevante sobre o tema”.

Mais além dos argumentos jurídicos, comissariar fiéis leigos se revela ridículo

Ao concluir este artigo, cumpre ainda notar que o Decreto em apreço – além dos atropelos já mencionados – viola também os cânones 50 e 51, porque não está suficientemente motivado em “razões graves” (cf. CIC, c. 318), e a Associação não foi ouvida previamente. Por estes e outros motivos, o tal Decreto é absolutamente inválido ou, tecnicamente, “infectus” (do latim, “não feito”), isto é, inexistente. Mas isto é matéria para outro artigo.

Os Arautos do Evangelho são hoje constituídos por homens e mulheres de todas as idades e condições, profissões e estados de vida; a própria idéia de comissariá-los resulta esdrúxula

Isto posto, a impossibilidade de comissariar os Arautos não releva apenas do direito… mas até do bom senso.

Uma recente reportagem da conhecida agência Gaudium Press cita um comentário deveras expressivo, que ajuda a compreender o quanto a própria idéia de comissariar uma associação privada de fiéis resulta esdrúxula. Com efeito, como já foi dito acima, os Arautos do Evangelho se desenvolveram como um grupo de fiéis leigos, e são hoje constituídos por homens e mulheres de todas as idades e condições, profissões e estados de vida, casados e solteiros.

Ora, segundo a mencionada reportagem, uma senhora entrevistada – depois de manifestar estranheza pelo fato do Vaticano estar tratando, de igual modo, leigos e religiosos – diz ter-se perguntado, junto com outros casais que também fazem parte dos Arautos, como ficariam suas famílias se, por absurdo, elas fossem todas comissariadas. E concluiu, não sem certo sentido de humor: “Em tom de brincadeira, eu perguntei ao meu marido se, da próxima vez que quisermos trocar de carro, vamos precisar do OK do Comissário. Mas meu marido nem ligou; ele riu, e deu de ombros”…

O “inexistente” Decreto teve efeitos muito reais, e fortemente negativos; forneceu a um setor da mídia – preconceituoso, fortemente ideologizado e de cunho anti-religioso – matéria para iniciar uma campanha de calúnias e difamação

Infelizmente, o “inexistente” Decreto teve efeitos muito reais, e fortemente negativos, tenham sido estes intencionais ou não. Com efeito, ele foi dado à publicidade pela Sala de Imprensa da Santa Sé, antes mesmo de ter sido comunicado aos interessados, e forneceu a um setor da mídia – preconceituoso, fortemente ideologizado e de cunho anti-religioso – matéria para iniciar uma campanha de calúnias e difamação que, até a data de hoje, ainda continua seus esforços para perdurar contra toda evidência. Para resguardar e defender a sua fama, a Associação Arautos do Evangelho não teve outra solução senão iniciar uma série de ações legais contra os seus detratores.

Diante desses fatos, força é de constatar a perplexidade de milhares de pessoas que, no mundo inteiro, não conseguem explicar-se a razão de tantas singularidades neste processo. A perplexidade gerou descontentamento, e o descontentamento, indignação. Em que degenerará esta indignação, a nível mundial, a continuarem as coisas como estão? Só o futuro dirá.


(*) José Manuel Jiménez Aleixandre, espanhol, cursou Arquitetura e Jornalismo na Universidade Complutense de Madrid, e é Doutor em Direito Canônico pela Pontifícia Universidade São Tomás de Aquino (Angelicum) de Roma.

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8 comentários

  1. JN Axt Veuillot-Krone disse:

    Os autores – quase diria fautores – do decreto de Comissariado certamente devem estar se lamentando não terem estudado Direto Canônico. Mas, se não forem tão rebarbativos à boa leitura, podem começar um “curso por correspondência” lendo os artigos destes prestimoso site. Na próxima empreitada, agirão de modo menos desastrado… ou ridículo. Mas que se cuidem: a barreira de argumentos em defesa da boa causa dos Arautos promete ser tão ou mais mortífera e eficaz quanto uma barreira de fogo de artilharia pesada.

  2. Luci Andrade Oliveira disse:

    Vi uma declaração do cardeal Braz de Aviz na qual ele dizia que ignorava o que iria fazer no Vaticano, pois não sabia nada sobre direito canônico e não entendia nada sobre administração.
    O Vaticano precisa é da ajuda dos doutores dos Arautos.

  3. Tendo bons canonistas a Pacha Mama e a mãe terra ganharão a merecida sentença: vão para o “quinto dos infernos”.

  4. Ana Madalena disse:

    Plínio Defanti, penso que você encontrou a solução. O Vaticano está precisando de canonistas Arautos.

  5. Nossa! Esse artigo é uma aula e tanto… como é bom a gente saber os nossos direitos. E como é triste ver tanta maldade, tanta má fé em querer destruir. Se a intenção fosse construtiva, porque o Vaticano não enviou uma admoestação levantando os pontos a serem melhorados ou corrigidos dos “presumívies” erros, e só depois da reincidência tomar uma atitude? Muito estranho isso… Quem tem ódio gratúito age assim mesmo, permite tantos escândalos comissariáveis nos próprios escritórios do Vaticano e ficam querendo por e tirar suas traves e ciscos nos olhos dos outros… Vergonha!

  6. Luiz PG disse:

    Super interessante o artigo, deixa claríssimo o tema. E é por isso que digo com conhecimento de causa #amoosarautos

  7. Plínio Defanti disse:

    Talvez o Vaticano esteje precisando de canonista dos Arautos! Quero acreditar nisso, se não, fica claro uma perseguição injusta e arbitrária contra os Arautos!

  8. Maria Lucilia Seraidarian disse:

    #AmoOsArautos

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